Mulheres constroem protagonismo no cultivo da erva-mate

Reportagem: Bianca Riet e Larissa Drabeski

A produção da erva-mate no Brasil está inserida em mais de 19 mil estabelecimentos, conforme o Censo Agropecuário de 2017 do IBGE. A cultura tem uma ligação forte com a agricultura familiar, setor que tem presenciado o aumento do protagonismo feminino. Em 2006, eram cerca de 600 mil mulheres à frente do negócio na agricultura familiar. Em 2017, já eram mais de 945 mil mulheres em postos de liderança. Atualmente elas representam a liderança de 20% das propriedades, mas esse número está aumentando.

O dado chama atenção de pesquisadores. “Nessa crescente a gente percebe a independência da mulher, tanto como trabalhadora, que se assume em uma profissão, quanto financeira. Esse protagonismo permite que ela administre o dinheiro da propriedade, a propriedade e o seu próprio dinheiro”, explica Joana Gall Pereira, autora de pesquisa de mestrado em Comunicação pela UFPR com foco na mulher rural.

A pesquisa intitulada ‘Mulher Rural: consumo e comunicação nas roças de Camboriú/SC‘ expressa um contexto local, mas representa realidades que se repetem em outras regiões e em diversos cultivos. Um dos desafios para as mulheres agricultoras ainda é o acesso à educação. “Elas tiveram ou têm que deixar a escola para trabalhar, ou até para cuidar dos filhos, dos irmãos”, aponta a pesquisadora.

A jornalista Joana Gall Pereira, em visita a propriedades durante pesquisa sobre os hábitos de consumo e de comunicação de mulheres rurais. Foto: Arquivo Pessoal / Joana Gall

Das 40 mulheres trabalhadoras rurais entrevistadas na pesquisa, 17 não chegaram a completar o Ensino Fundamental e outras cinco chegaram ao final dessa etapa, ou seja, mais da metade dessas mulheres não chegou ao Ensino Médio. Os casos de mulheres que chegam até o Ensino Superior são raros.

Por outro lado, as mulheres do campo se mostram cada vez mais conectadas – mudança apontada como bastante significativa para a pesquisadora. De acordo com os dados da pesquisa, mais de 80% das participantes demonstraram interesse em se manterem conectadas e informadas.

Mesmo com as mudanças, algumas questões de gênero se perpetuam, como a tripla jornada. Principalmente entre as agricultoras mais velhas, muitas vezes o trabalho relacionado ao cuidado da casa e dos filhos não é considerado como trabalho produtivo

Nem todas as mulheres agricultoras reconhecem a importância do seu trabalho doméstico, que permite a homens e outras mulheres manterem outras atividades fora do lar. Mas algumas, especialmente nas gerações mais jovens, já estão despertando para esse valor. E para além do trabalho doméstico, são muitas as histórias femininas que marcaram o curso da produção ervateira com sua dedicação e inventividade. 

Pioneirismo no cultivo de mudas

Odorica Terezinha Drabecki, a Dora, tem 63 anos, todos vividos na roça e a maior parte deles dedicados ao cultivo da erva-mate. Essa planta perpassa as gerações de sua família. Seus pais já trabalhavam com a erva, assim como os pais de seu falecido marido. O casal seguiu na atividade, com extrativismo e uma ervateira própria, com secagem no barbaquá. Hoje, o filho Tiago dá continuidade à herança familiar e vende a erva, nos seis alqueires de plantio – e a história de como esse plantio nasceu narra o protagonismo dessa família.

Era 1980 e praticamente toda a produção de erva-mate dessa tradicional região ervateira provinha de extrativismo. “Ninguém sabia fazer as mudas, só o pessoal da Leão Júnior, que fazia só para a fazenda deles. Eles não davam a técnica para ninguém. Um empregado nos contou os detalhes e a gente conseguiu fazer”, ri Dora.

Se hoje a produção de mudas de erva-mate é simples, na época o processo era longo. O marido colheu as sementes, que foram deixadas de molho na água por dias. “A gente amassou elas e passou na peneira, para sair só a semente limpa”, lembra ela. Depois, as sementes foram armazenadas em um tonel com areia. Foram seis meses até considerarem que a casca estava macia o suficiente para germinar sem perdas. “Ela tem uma casca muito dura. Na natureza, o passarinho come e amolece no estômago dele, então a erva-mate nasce do cocô dele. A gente usava a areia pra amolecer”, conta Dora.

Depois de seis meses estocada na areia úmida, as sementes eram semeadas em canteiros – foram mais 40 dias para germinarem. Cada muda saudável era transplantada para um vaso e de lá, na idade certa, levada para a nova lavoura. “Colhemos 5 quilos de semente e fizemos cerca de 10 mil mudas. Antes tínhamos só erva-mate nativa, foi assim que começamos nosso plantio”, relembra Dora. “Elas ainda estão lá, ano passado colhi 60 mil quilos de erva-mate daquela área”, sorri. “A gente queria muito fazer mudas e não conseguia. Quando conseguimos, foi uma vitória, fomos pioneiros”.

Dora tem uma relação estreita com essa planta, uma das principais culturas do sítio. “Quando estou um pouco cansada, carregada, eu vou lá no plantio e lembro de tudo, do quanto trabalhamos juntos, e me sinto muito bem”.

Dora foi a responsável por cuidar dos bebês de erva-mate. Era ela que olhava por eles ao longo de todos os meses desse processo, desde as regas na areia, até os transplantes. Se ela segue trabalhando? Sim. “Cuido do meu neto, da casa, da horta”, conta. É a matriarca da família que dá a estabilidade para que o filho e a nora possam passar o dia se dedicando a seus trabalhos, enquanto o neto está em boas mãos, a casa recebe os cuidados, a comida é servida na mesa. E no fim do dia? O chimarrão passa em roda marcando o momento de descanso.

Mulheres rurais

Se para Dora o trabalho no campo é uma tradição familiar que se mantém por gerações, essa não é a realidade da maioria das regiões do Brasil. Com o êxodo rural, a saída dos filhos das agricultoras do campo é cada vez mais frequente. Diante desse cenário, projetos como o conduzido pela Associação dos Produtores de Erva-Mate de Machadinho (Apromate), no norte do Rio Grande do Sul, ganham relevância, por atuarem na contramão desse fluxo e favorecerem a permanência dos jovens no campo – além de destacar o papel que as mulheres vêm conquistando gradativamente na agricultura familiar.

A engenheira agrônoma Selia Felizari [à esquerda] acompanha visita a uma estufa de produção de mudas de erva-mate. Foto: Divulgação

A associação é presidida pela engenheira agrônoma Selia Regina Felizari, que faz parte da organização desde a sua fundação, em 1994. O destaque do trabalho diz respeito à implantação do Sistema Agroflorestal (SAF) Cambona 4, surgido em 2000, por meio de uma parceria da associação com Embrapa Florestas, Emater-RS e Secretaria de Agricultura da Prefeitura Municipal de Machadinho, com o apoio financeiro da Machadinho Energética S.A (Maesa).

O projeto inclui o melhoramento genético da espécie e foca no plantio de erva-mate consorciado com outras espécies de árvores nativas. A sua implementação contribui para a reconstrução do hábitat natural da erva-mate, ao mesmo tempo em que gera emprego e renda no meio rural.

“Hoje o sistema serve de modelo para outras comunidades, porque através de pesquisa, tecnologia e turismo, alavancou a indústria, melhorou os preços da erva mate e proporcionou melhorias para as propriedades e o meio ambiente”

Selia Felizari, engenheira agrônoma e presidente da Apromate.

O resultado foi a elevação de renda, que favorece a agricultura familiar e a fixação de famílias no campo. “O cultivo da erva-mate tem uma importância muito grande dentro da propriedade, pois além de ganhos econômicos, tem ganhos ambientais importantes, como a preservação de nascentes de água e o plantio de outras espécies nativas no Sistema Agroflorestal de Erva-Mate”, complementa a engenheira agrônoma.

O projeto já conquista reconhecimento para além das fronteiras nacionais. Em 2020, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), das Nações Unidas, reconheceu o Sistema Agroflorestal Cambona 4 como um dos projetos mais transformadores para a Sustentabilidade no Brasil, na categoria Agricultura & Florestas. O sistema se destaca por promover geração de emprego e renda, redução de desigualdades e lacunas estruturais e promoção da sustentabilidade ambiental.

O Sistema Agroflorestal Cambona 4, desenvolvido pela Apromate, recebeu reconhecimento internacional da ONU em 2020. Foto: Arquivo Embrapa

E é claro que esse trabalho de sucesso tem a participação de muitas mulheres. “A participação feminina tem seu espaço na produção agrícola e na erva-mate, principalmente por ser uma cultura de pequena propriedade. As mulheres participam desde a implantação e manutenção do erval e também nas equipes de colheita”, destaca Selia.

Mesmo com as dificuldades, as mulheres demonstram orgulho e satisfação em serem agricultoras. Na pesquisa de Joana Gall Pereira, 77% das entrevistadas afirmaram se sentir feliz na rotina do trabalho rural – um dado importante para apostar que esse espaço de protagonismo feminino pode crescer muito mais também na produção ervateira. As histórias de Dora e Selia são exemplos de mulheres que encontram a realização no trabalho do campo e no cultivo da erva-mate.

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